Quem sou

Vitória, ES, Brazil
Sou servidor público federal, formado em Administração Pública pela Unisul. Atualmente, estudo teologia na Faculdade Unida de Vitória e frequento uma comunidade da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Vivo todas as ambiguidades possíveis e, a partir delas, confio na imensa graça de Deus.

Friday, April 29, 2011

Deus dando sonoras gargalhadas

Mary E. Hunt


No começo Deus se divertia.
Ela soltava sonoras risadas e
ria mais ainda porque era bom.
Ela reclinava-se na cadeira e sorria.
Ela batia palmas de satisfação
e imaginava suas irmãs dançando.
Ela não fazia outra coisa
senão divertir-se, nada mais.

Deus sabia que havia trabalho a ser feito
- um mundo a ser criado,
pessoas a serem plasmadas
e todo um cosmos a ser planejado.
Ela viu de relance que a criação
iria incluir a mania de fazer reuniões
e que haveria injustiças a corrigir,
e mesmo assim ela ria,
sabendo que no final
tudo seria alegria e divertimento.

Ela não explicou a ninguém em particular
que sua intenção era que a vida fosse só
divertimento: - alegria e prazer
é o primeiro princípio.
Ela sabia que outras supostas divindades
davam ênfase ao trabalho e à obrigação.
Ela refletiu astutamente que,
se a meta era alegria para todos,
todo mundo poderia descansar,
relaxar, pelo menos uma parte do tempo.
Só pensar nisso levou-a
a abrir-se num largo sorriso.

Anos-luz depois,
quando a criação veio à existência
e as pessoas começaram a levar a vida
com trabalho árduo e suor,
ela notou que seu primeiro princípio
fora substituído pelo trabalho e pela dor.
Então ela enviou um lembrete de seu legado.
Deu-lhe vários nomes:
férias, lazer, descanso, recreação, divertimento.
Alguns acharam que era um resquício
de épocas passadas.
Mas Deus sabia que era a coisa real.
Ela deu-lhe o nome de salvação.

Sunday, April 24, 2011

Cruz e Ressurreição



1. “Mas vós, quem dizeis que eu sou?” (Marcos 8.28). Essa pergunta que Jesus coloca diante de seus discípulos é deveras perturbadora. Jesus de Nazaré pede aos seus discípulos uma afirmação do que eles acreditavam acerca do seu mestre. Na história do cristianismo, muito se tem falado sobre quem é esse Jesus e o significado de sua trajetória. Nesse domingo de Páscoa, gostaria de compartilhar algumas reflexões sobre o significado da morte e da ressurreição de Jesus para nós, cristãos do século XXI.

2. Certamente, pensar no significado da morte e ressurreição do nosso mestre nos leva também a pensar sobre a salvação que ele nos oferece. Nos séculos XI e XII, desenvolveram-se diversas propostas que propunham explicar o papel da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo na salvação que nos foi conquistada. Nesse momento, o que estava em jogo não era a encarnação de Cristo, mas o propósito da cruz.

3. Anselmo de Cantuária (1033 – 1109 d.C.) parece ser o responsável por uma doutrina da satisfação dos pecados. Para ele, o caráter perfeito de Deus não pode tolerar o pecado. Já que Deus deseja entrar em comunhão conosco, e sendo nós pecadores e, portanto, incapazes de nos achegarmos a ele, Deus mesmo se fez humano. Na pessoa de Jesus Cristo, o abismo que nos separava de Deus, ou o abismo entre a nossa iniqüidade e a natureza perfeita de Deus, foi retirado. Com sua morte na Cruz, Cristo toma sobre si o castigo pelos nossos pecados, satisfazendo a justiça divina, e faz com que a restauração da comunhão com Deus seja possível. Anselmo apresenta um Deus muito preocupado com a justiça, mas que dá pouco espaço para a misericórdia. Esse não seria um Deus do templo, em vez do Deus de Jesus Cristo, quem viveu e pregou os valores do reino?

4. Trinta anos depois, a posição de Anselmo foi questionada. Pedro Abelardo, teólogo escolástico francês, problematiza: “Como a morte do seu filho inocente pode tanto agradar a Deus Pai para que, através dela, ele possa se reconciliar conosco?”. Para ele, o amor de Cristo, demonstrado nos evangelhos, nos impulsiona a responder à altura. Quando olhamos para o amor de Cristo por Deus, sua submissão à vontade do Pai, sua preocupação com os outros e sua morte na Cruz (um ato de perfeito amor, segundo Abelardo), seremos inspirados a viver uma vida igual à de Jesus. Mas até que ponto esse modelo ético nos permite enxergar o mundo de ilusões e decepções a que estamos expostos? Se seguir a Jesus também significa ser vítima, então as pessoas marginalizadas e oprimidas devem aquiescer à sua situação, aceitando-se como vítimas?

5. Irineu e Martim Lutero já pensam na ressurreição de Jesus como vitória sobre Satanás. Pressupõe-se que Deus está em batalha contra as forças de Satanás. A morte de Jesus na cruz foi uma vitória das forças do mal. Mas a ressurreição representa a vitória definitiva e final sobre Satanás. Infelizmente não é possível ver a vitória de Deus sobre Satanás no mundo de hoje. Mas pensar que Jesus Cristo venceu a morte e as estruturas contrárias à vida nos dá esperança pela vitória contra os poderes que hoje ameaçam a vida.

6. Nesse contexto, gosto de pensar que Jesus assumiu uma ética do risco, ou seja, sua postura ética foi de tal forma coerente e contrária às estruturas de morte que o fim só poderia ser um: a cruz. Numa sociedade dominada pelo Império Romano, na qual a maioria da população era explorada por pesados impostos cobrados tanto pelo império quanto pelo templo, o judeu palestino que ensinava subversão era indesejado. Jesus conhecia as conseqüências de suas ações; mesmo assim, trabalhou pela cura, salvação e libertação do povo. Pensar em Jesus como alguém que assumiu uma ética do risco nos ajuda a entender que Deus não crucificou seu Filho, mas foram os próprios seres humanos que cometeram esse ato violento. A cruz é símbolo do pecado humano, não de um Deus abusivo.

7. A cruz também é símbolo da vitória de Cristo sobre a morte. A partir da ressurreição, a morte não prevaleceu, mas sim a vida. Mais do que vitória sobre a morte, a ressurreição de Cristo representa a vitória sobre o mal e todas as estruturas de morte que assolam a humanidade. O Cristo ressurreto continuou a obra de Jesus de Nazaré: curar, salvar, libertar... A Igreja de Cristo também continua essa obra, operando sinais do reino de Deus, assim como seu mestre operou.

8. Neste domingo de Páscoa, minha oração é que sempre nos lembremos desses eventos e passemos a viver uma vida que responda à altura da morte e ressurreição de Cristo. Da mesma forma que Deus derrotou o mal, também nós podemos derrotar o mal hoje, operando sinais do reino de Deus.

Saturday, April 23, 2011

Religião e Esfera Pública


O papel da religião na esfera pública é motivo de controvérsia. Desde o Iluminismo, defende-se que a religião deve permanecer completamente alheia a qualquer discussão política. Quando muito, deve traduzir sua fé em linguagem secular para, assim, poder entrar na esfera pública com algo objetivo a dizer. De início, encontramos nessas posições uma confusão entre as relações política/religião e instituição política/instituição religiosa. Nunca religião e política andaram dissociadas, mas é desejável que suas instituições subjacentes caminhem independentes.

Isso se deve, em grande razão, pelo fato de a religião tratar do simbólico e, assim, oferecer orientações axiológicas, área esta com a qual o racionalismo moderno pouco contribui. Segundo Gramsci, “a luta em torno do simbólico e das representações do mundo não se apresenta como um aspecto marginal, mas aparece como parte constitutiva da luta política em favor de mudanças estruturais” (BITTENCOURT FILHO 2010, p. 141). Continuando, José Bittencourt Filho (2010, p. 142) afirma:

“Ao administrar a relação entre o sagrado e o profano, a Religião organiza as ambigüidades, as contradições, e os conflitos latentes e, dessa maneira, exorciza o caos (ao conferir sentido), restaura as relações desgastadas (por meio da comunhão de ideais) e (re)infunde a esperança utópica (ao rearticular a coesão)”.

Como exemplo desse ímpeto transformador, temos a inserção, nos anos setenta, das ciências sociais como mediação hermenêutica para a teologia latino-americana. Consequentemente, mesmo numa sociedade capitalista, as relações de poder e dominação passaram a ser discutidas e questionadas no âmbito eclesial. Surgiram diversas pastorais e movimentos populares, tanto na igreja católica romana quanto nas igrejas protestantes.

Talvez essa influência da religião sobre a política na sociedade brasileira contemporânea tenha chegado ao auge com a candidatura de Anthony Garotinho à presidência, no ano de 2002. Evidentemente que essa candidatura representa outro movimento religioso, que não aquele iniciado na década de setenta, mas é conseqüência do aumento de grupos cristãos conservadores e fundamentalistas, cuja visão de mundo está cercada por idéias conquistadoras e proselitistas, próprias das missões evangélicas de diferentes períodos no Brasil.

Daí, surgem as perguntas: a religião tem legitimidade para entrar na esfera pública com o seu discurso inalterado? Quais são os limites da religião nessa esfera pública? Para Habermas, a religião só pode entrar na esfera pública se traduzir seus conceitos para uma linguagem secularizada. Contudo, há objeções a esse posicionamento.

Lembro aqui a necessária distinção entre política/religião e instituição política/instituição religiosa. Estas devem caminhar separadas em Estados democráticos de direito, com o fim de garantir a igualdade de tratamento para todos os cidadãos. Contudo, política e religião não podem andar separadas, pelos fatos e fundamentos a seguir expostos.

“Na sociedade pós-secular, o Estado democrático de direito é leigo, entendido este termo em sentido amplo e não só religioso, de modo que deve exercer uma forte neutralidade em relação às concepções abrangentes sobre a realidade presentes no mundo da vida. Somente exercendo tal neutralidade é que se pode conseguir justiça política na esfera pública que, em sociedades democráticas, exige a plena e igual participação de todos os cidadãos, independentemente de suas idéias amplas sobre a realidade” (ZABATIERO 2008, p. 145).

É exatamente por ter que se manter neutro diante das diferentes cosmovisões que o Estado deve dar ouvidos à religião, com sua linguagem e pressupostos próprios. Afinal de contas, o racionalismo muito fez para entender o mundo objetivo, mas pouco tem a apresentar no seu aspecto valorativo.

“Dentro do conceito pluridimensional da razão, poder-se-ia dizer que a fé é mais ajustada para a produção de sentido com vistas a finalidades expressivas e axiológicas; menos ajustada, consequentemente, à produção de sentido com vistas a fins instrumentas e estratégicos” (ZABATIERO 2008, p. 156).

Assim sendo, a sociedade deve garantir a liberdade religiosa e a pluralidade de imagens do mundo. Para tanto, à pessoa religiosa exige-se que reconheça que sempre haverá um nível de dissenso, o que é saudável num mundo pluralista. À pessoa não-religiosa, por sua vez, exige-se que reconheça a validade e legitimidade do discurso e do conhecimento religioso, tentando entender seu viés e lógica.

REFERÊNCIAS

BITTENCOURT FILHO, José. “Da política de Deus: em ensaio sobre democracia e religião” Revista Reflexus. 04. Vitória: Faculdade Unida, 2010, p. 127-168.
ZABATIERO, Julio Paulo Tavares. “A religião e o debate público”. Cadernos de Ética e Filosofia Política. 12. São Paulo: USP, 2008, p. 139-159.

Tuesday, April 19, 2011

Teologia Indecente

Esse blog foi inspirado no pensamento de Marcela Althaus-Reid, teóloga argentina que exerceu sua carreira docente na Universidade de Edinburgo, Escócia, até falecer em 2009. Sua proposta marginal é instigante e enriquecedora. Em homenagem a essa mulher admirável, criei este blog e relembro, abaixo, entrevista concedida à revista Época.


Teologia indecente
Polêmica e provocadora, a professora de Ética Cristã da Universidade de Edimburgo reivindica um Cristo bissexual

ELIANE BRUM



No fim dos anos 90, a teóloga Marcella Althaus-Reid começou a escrever um livro para ela e para seus amigos. Era um desabafo de quem, ainda na infância, sentia que não cabia em nenhuma fôrma: nem a da família, nem a da sociedade. O livro fez tamanho sucesso em particular que ela foi convencida a publicá-lo. Indecent Theology (Teologia Indecente) foi lançado no Reino Unido em 2000 e Marcella nunca mais parou de produzir polêmica. No ano passado, ela botou no mercado outro livro provocador: The Queer God (O Deus ''Esquisito''). A palavra inglesa queer é habitualmente traduzida como ''gay'', mas Marcella a usa no sentido original da Cultura Queer, um movimento que surgiu em Londres e Nova York no fim do século XX e ganhou importância na política e no comportamento. Nele, Queer é compreendido como aquilo que está fora da possibilidade de formatação ou definição, para além da ordem. É transgressor, mas também indefinível.

Os dois livros de Marcella - há mais três no prelo - giram em torno desse pensamento, ainda pouco conhecido no Brasil. Marcella defende a idéia de que a teologia precisa resgatar o que é tradicionalmente excluído: não só os pobres, mas a sexualidade. Propõe uma teologia ''sem roupas íntimas'', contesta a ''ideologia heterossexual'' da Bíblia e lança um Deus de muitas faces - à imagem e semelhança de todos e de nenhum em específico. Provocadora - por convicção e por marketing -, essa argentina convertida em escocesa, criada na religião protestante quacre, esteve no Brasil pela primeira vez no fim de agosto, a convite da Universidade Metodista de São Paulo. Fez conferências e esvaziou as livrarias paulistanas dos livros do poeta Glauco Mattoso, de quem é fã confessa. Deu a seguinte entrevista a ÉPOCA.


Marcella Althaus-Reid
Fotos:
Roberta Luckmann/ÉPOCA
Dados pessoais
Nasceu em Rosário, Argentina. Vive na Escócia há 18 anos. Tem 52 anos

Carreira
Com Ph.D. em Teologia, é professora da Universidade de Edimburgo, onde leciona Ética Cristã e Teologia Prática

Livros publicados
Indecent Theology (2000), The Queer God (2003). Ainda em 2004, vai lançar Da Teologia Feminista à Teologia Indecente. Nenhum deles foi traduzido para o português

ÉPOCA - Você diz que a Teologia Indecente é como levantar as saias de Deus. O que isso significa exatamente?
Marcella Althaus-Reid -
A Bíblia está cheia de metáforas sexuais. O cristianismo vem de uma metáfora sexual - um Deus que tem amores com uma mulher e dessa relação amorosa nasce Cristo. Sai tudo de uma matriz sexual que querem sempre dessexualizar. Uma nuvem, uma pomba, um anjo. E essa mulher é comprometida, aparece com uma gravidez que não sabem de onde vem. ''Mas quem é teu pai?'', deviam dizer a Jesus quando ele andava por Israel. Então, em vez de rechaçar a metáfora sexual, eu brinco com ela. O cristianismo entende e organiza o mundo a partir de uma ideologia heterossexual: a família, a subordinação, a dualidade. Minha proposta é pensar uma fé e uma teologia a partir de experiências sexuais diferentes. Não a dos gays, ou a das lésbicas, ou a dos travestis, mas a partir da Teoria Queer, uma espécie de guarda-chuva que abriga toda a diversidade sexual. Quero saber, por exemplo, como um travesti se relaciona com o sagrado, como é o Deus do transexual. Minha teologia não é sobre igualdade, é sobre diferença.

ÉPOCA - Como é o Deus ''Queer''?
Marcella -
É um Deus que não está terminado. Temos Deus saindo do armário ao dizer ''não posso ser Deus, tenho outra identidade, preciso ser homem''. Não é um gesto de doação aos homens, mas uma necessidade de Deus de revelar-se. Dizer: ''Sou frágil, sou humano''. Sair desse armário lhe custou caro. Essa é uma interpretação nova de Deus, a partir de outra maneira de se relacionar com a divindade. Essas metáforas do Deus perfeito, da sabedoria suprema, do terminado vêm de uma maneira de pensar pré-moderna. Eu trabalho com o pós-moderno. O Deus Queer é um Deus inacabado. Em processo, ambíguo, de múltiplas identidades, que nunca terminamos de conhecer porque, quando o abarcamos, escapa, há mais. Não quero um Deus do centro hegemônico, um rei que vem te visitar na favela, te dá a mão e diz: ''Eu sou Deus, tenho um reino e sou tão bom que venho te visitar. Mas, agora, dá licença que tenho de voltar ao Reino dos Céus''. Falo de um Deus que abre seu armário e diverte seus amigos, dizendo: ''Agora sou Marlene Dietrich''.

ÉPOCA - Por que indecente? O que, então, é decente?
Marcella - Eu vivi na Argentina durante toda a ditadura militar. A dialética decente-indecente foi muito importante para minha geração. Os militares tinham uma moral sexual muito restrita. E tudo isso no meio de um discurso político, mas também religioso: o discurso da decência. E nada mais indecente, no sentido ruim da palavra, do que o que eles diziam e faziam. Então eu tomo o oposto. Se isso é decente, então sou indecente. Não quero incluir-me. Eu quero permanecer às margens e quero reivindicar um Deus que é marginal. Sou indecente, graças a Deus.


''A Teologia da Libertação é autoritária. Tem estrutura colonial, da Igreja européia. O pobre é visto como o nativo, a criança, o inocente. Tem de ser pobre e inocente, não pode ser pobre e gay ''

ÉPOCA - Você fala de um Bi-Cristo, um Cristo bissexual…
Marcella -
Que sabemos da sexualidade de Jesus? Nada. O que dizem os Evangelhos? Dizem que foi circuncidado. Que falava nas sinagogas e conhecia as escrituras. Esses são os poucos detalhes que sabemos de Jesus. Eu sei que Jesus foi homem, mas gosto de dizer que sabemos que foi homem por uma ou duas coisas. Da sexualidade de Jesus não sabemos nada. Porque ser homem não significa ser homem. Então, por que não assumir que Jesus teria outra sexualidade? E qual poderia ter sido? Busco elaborar um Bi-Cristo. Mas não para buscar experiências sexuais. É a forma de pensar que me interessa. Bissexualidade é tabu. Os gays não gostam. As lésbicas não gostam. Dizem: ''Decida-te''. Aí pensei em levantar essa bandeira que, por ser crítica, é muito interessante. O Bi-Cristo é um Deus que está no meio, pode entender as diferenças e amá-las. Um Deus que não pode ser encaixado em uma identidade fixa porque nunca se define completamente. É um Messias amplo.

ÉPOCA - Você é uma crítica da teologia feminista. Diz que o gênero não é uma mudança estrutural, apenas uma troca de roupa. Como é isso?
Marcella -
Critico a teologia feminista porque é uma teologia de igualdade. E eu busco uma teologia da diferença. Deus não é mãe. Botar a mãe no lugar do pai é só uma troca de roupagem. Não me interessam as metáforas de maternidade e de paternidade. São coloniais. Madre Espanha, Madre Portugal, Madre Igreja. Elas implicam a existência de um menor de idade. E eu quero sair disso. 

ÉPOCA - Você também diz que a Teologia da Libertação está estagnada...
Marcella -
Está estagnada, mesmo, em todo o mundo. Mudou o cenário político. A Teologia da Libertação tinha uma análise marxista antiga que não pode pensar bem os temas da globalização, que é um fenômeno mais cruel. Continua fixa numa perspectiva histórica dos anos 70. É um discurso do pobre, não do excluído, que é outra história. É muito bonito dizer que existe um cristianismo da América Latina, uma Igreja do pobre, comprometida. Mas o que foi proletariado está hoje nas ruas, não tem onde viver. A Teologia da Libertação perdeu tudo isso. Os teólogos ainda querem falar sobre fábricas e operários, mas fábricas e operários não fazem mais parte da realidade.

ÉPOCA - Você acusa a Teologia da Libertação de autoritária...
Marcella -
Ela é. Tem estrutura colonial, da Igreja européia. O pobre é visto como o nativo, a criança, o inocente. Tem de ser pobre e inocente, não pode ser pobre e gay. Tem de ser pai de família. As mulheres têm de dizer obrigada, padre, o senhor é muito amável. Mas o pobre rebelde, que não diz por favor, mas diz ''me dá o que eu preciso'', instala toda uma tensão de poder. O teólogo da libertação é paternal, é bom, sempre concede, não te trata por igual. Aí há um problema. Eu sempre digo: onde estão os discípulos de Leonardo Boff, de Gustavo Gutiérrez? Não há. Nem sequer formaram discípulos porque são muito centrados em si mesmos. Eu entendo que no tempo da ditadura se necessitava de líderes, mas os téologos da libertação não fizeram a transição para a democracia.

ÉPOCA - E o que vai ocupar esse vazio, a Teologia Indecente?
Marcella -
Não estou questionando o compromisso com os excluídos, mas quem são eles. Teologia é uma caminhada. Temos de seguir. A Teologia Indecente é uma forma de seguir, mas há outras. Elas tratam de refletir todas as lutas, não só a luta do pobre. Mas a luta do travesti, do negro, do amarelo, de todos. O mais importante, penso, é que não se façam ideologias, que são sempre impostas. O único jeito é o diálogo dos diferentes.

ÉPOCA - Mas o fundamentalismo não pára de crescer...
Marcella -
Marx dizia que a religião é o ópio do povo. Mas ópio, no tempo de Marx, era remédio, acalmava a dor. Por isso eu sou cuidadosa antes de sair tachando de falsa consciência. Se você precisa sobreviver 24 horas por dia e não tem nada, necessita agarrar-se a algo religioso, sólido, fundamental. É uma necessidade emocional num mundo sem sentido. Que seja falsa consciência, que seja ópio, aplacar a dor não é pouco. Tem de respeitar as pessoas quando elas dizem que precisam rezar o rosário para seguir a vida. Basta ver que o pentecostalismo, a idéia de que o Espírito Santo cura, cresce nos países onde a Medicina é cara. Os dons do Espírito Santo são materiais, refletem uma vida material difícil. Por outro lado, há coisas interessantes nesse processo, como a ruptura com um tipo de igreja burocrático, uma espiritualidade intelectual, que não se relaciona com o povo.

ÉPOCA - No Brasil, o Supremo Tribunal Federal se prepara para votar uma ação que permite a interrupção da gestação em casos de anencefalia. A Igreja Católica se opõe. Por que você acha que esse tema é tão caro à Igreja?
Marcella - A Igreja Católica, como outras, tem um problema com a definição de vida. Preocupa-se com o feto, mas não com as mulheres que morrem nas macas do aborto. Tem um conceito de vida estranho e seletivo. É misógina. A mulher é inimiga, representa a tentação, a queda. O homem tem algo que representa a divindade, a mulher não. Por isso não pode ser sacerdote. Há outros casos, como quando é preciso escolher entre a vida da mãe e a do feto. Os católicos santificaram aquela mulher, como é mesmo o nome?


''Marx dizia que a religião é o ópio do povo. No tempo dele ópio era remédio, acalmava a dor. O pentecostalismo, a idéia de que o Espírito Santo cura, cresce nos países onde a Medicina é cara''
ÉPOCA - Gianna Beretta Molla. (Em 1962, Gianna, com um tumor no útero, preferiu morrer a abortar a quarta filha. Foi santificada em maio.)
Marcella -
Essa. Porque preferiu deixar três filhos órfãos a abortar o feto e salvar sua vida. Incrível. Imagino que deva ter sido assim: ''Antes de cuidar de todas essas crianças, eu morro. É muito trabalho!''. Virou santa. Esse é o componente misógino. Mas nem todos os católicos são assim. Estou convencida de que a Igreja tem um falo muito grande e, ao mesmo tempo, tem uma base homossexual muito grande. Misógina e homossexual porque a misoginia impede seus membros de conhecer e amar as mulheres. Não que tenham amantes, mas é como são formados. A mulher é um marciano. Na questão do aborto, o que dói é que a Igreja não discute com seriedade. É autoritária. Diz que isso não se discute porque Deus disse. Mas Deus disse o quê? Tem de acabar com esse discurso. Deus não disse nada. Toda doutrina é escrita por contendas políticas. Assim, o que tem de acontecer é que o debate do aborto tem de ser retirado da Igreja, tem de acontecer na esfera dos direitos humanos.

ÉPOCA - O que você achou do último documento do Vaticano (''Carta aos bispos sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no mundo'')?
Marcella -
Quase morro de rir. É um documento primitivo. Se um aluno meu escreve um ensaio desses, eu devolvo e mando ele ler mais. Me assombra um papel tão ignorante, porque na Igreja Católica há gente muito inteligente. Um discurso baseado na interpretação simplista da Bíblia, da Arca de Noé, mas o que são essas mitologias depois de Marx, de Freud? E ao final diz que as mulheres têm de ser mães. Não podem ser sacerdotes, mas podem contribuir muito porque são especiais. Estou sempre contra aqueles discursos que falam de como a mulher tem mais ternura, cuida mais das pessoas. Eu, não. Sou um desastre, não cuido de ninguém. Fui chamada para comentar o documento numa rádio da Grã-Bretanha. Eu não tenho nada a dizer. Algumas feministas ficaram indignadas. Achei engraçado. Não é para levar a sério. É para rir.

ÉPOCA - Qual foi a repercussão de Teologia Indecente?
Marcella -
Eu me surpreendi, fui bem recebida e não estou acostumada. Ganhei muitos rosários. Teólogos me escreveram dizendo que estavam no armário. Não porque são gays ou se vestem de mulher, mas porque estão no armário heterossexual. Falo de adultério, de promiscuidade. O casamento às vezes funciona, às vezes não, funciona para alguns, para outros não. Eu não funciono com o monoamor. Sou poliamorosa.

ÉPOCA - Como você se define?
Marcella -
Eu não me defino nunca. Sou Queer.

ÉPOCA - Você é bissexual?
Marcella -
Suponho que sim. Amei homens, amei mulheres, nunca sei a quem vou amar. Amo. Na Grã-Bretanha não me interessam os homens. Já no Brasil vejo os homens e penso: hum… até poderia chegar lá.

(entrevista extraída no site http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT805466-1666-1,00.html)