Quem sou

Vitória, ES, Brazil
Sou servidor público federal, formado em Administração Pública pela Unisul. Atualmente, estudo teologia na Faculdade Unida de Vitória e frequento uma comunidade da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Vivo todas as ambiguidades possíveis e, a partir delas, confio na imensa graça de Deus.

Tuesday, July 12, 2011

Evangelizar é pregar vida boa, é estar com quem sofre, é dar esperança


Leituras Bíblicas: 1 Coríntios 1.18-31; Mateus 5.1-12


Em que consiste o ministério cristão? Qual é o nosso papel no mundo? Como nós, cristãos, devemos agir e falar da nossa fé para as outras pessoas? Por acaso a Igreja é uma instituição que deve ensinar um monte de dogma e doutrina? Por que estamos reunidos aqui, hoje, nesse culto? Essas são perguntas que vira e mexe a gente faz. E quando a gente compara a nossa igreja a outras, parece que essas perguntas ficam mais incômodas ainda. A gente liga a TV e vê pastores, missionários, apóstolos... E todos eles dizem que Deus está operando milagres através da igreja deles. E eles pregam a verdade deles de uma forma tão firme e tão agressiva, que todas as outras verdades são vistas como erradas, como heresia.

Do outro lado, a gente vê um monte de teoria, de pensamento, de gente que se diz inteligente, de gente que se diz portadora da verdade, da ciência, do que é certo e do que é errado, dizendo o que a gente tem que fazer, como a gente tem que viver. Às vezes parece que a gente vive na ditadura do especialista. O pedagogo diz como a gente tem que criar nossos filhos. O médico diz como a gente tem que cuidar da saúde. O psicólogo dá receita pra ser feliz. No meio de tantas propostas, a gente fica até perdido, não é mesmo?!

A carta do apóstolo Paulo nos alerta para algumas formas tentadoras de ser igreja e de pregar o que a gente crê. Somos tentados a evangelizar através de grandes sinais, de milagres, de um espetáculo pra chamar a atenção das pessoas e dar alguma credibilidade à nossa mensagem. Se queremos mostrar poder, então nós mesmos vamos trair a mensagem de Jesus. O próprio Jesus se negou a afirmar sua autoridade através de sinais. Quando os fariseus começaram a pressioná-lo para que ele fizesse algum milagre para provar que seu poder era de Deus, Jesus simplesmente respondeu: “Por que as pessoas de hoje pedem um milagre? Eu afirmo a vocês que isto é verdade: nenhum milagre será feito para essas pessoas” (Marcos 8.12). Se nem Jesus fica dando milagre para provar que sua mensagem vem de Deus, por que a gente quer ficar fazendo milagre?

Tudo bem que a Bíblia diz que Jesus e seus discípulos realizaram um monte de curas e exorcismos. Mas essas curas e exorcismos tinham um único objetivo: mostrar que o reino de Deus já tinha chegado para aquelas pessoas. Aliás, para mostrar que o reino de Deus já chegou para todo mundo. E que é um reino de cura, de justiça, de salvação.

Só que a mensagem de Cristo é diferente. Ele quer que a cruz seja nossa referência, o nosso jeito de pregar e de viver a nossa fé. Se queremos ser fiéis à mensagem de Jesus, a nossa esperança e o nosso testemunho devem estar firmados no Cristo que “abriu mão de tudo o que era seu e tomou a natureza de servo, tornando-se assim igual aos seres humanos. E, vivendo a vida comum de um ser humano, ele foi humilde e obedeceu a Deus até a morte – morte de cruz” (Filipenses 2.7-8). Sabe, é na cruz, nesse lugar de depreciação e de humilhação, que Jesus nos oferece sua misericórdia.

A carta de Paulo aos coríntios nos ensina que a lógica de Deus é diferente da lógica do mundo, é diferente da nossa própria lógica. O que Deus escolhe e valoriza parece loucura. Quem Deus escolhe e valoriza parece loucura. E é exatamente aquilo e aqueles que o mundo despreza que Deus escolhe.

Sabe, a lógica do mundo é vencer, é ganhar muito dinheiro, é ter poder, é conseguir comprar muita coisa, é o consumismo sem limites... Só tem valor quem produz e é útil de alguma forma. Se você não consegue se adaptar, você está fora. Bom é o cara que trabalha muito e que consegue fazer muito dinheiro para desfrutar de tudo o que há na vida.

A lógica de Deus é diferente. Deus ensina a partilha e valoriza a vida de todo mundo. Todos e todas são criados e criadas à imagem e semelhança de Deus. A gente tem muito valor, pessoal... Todas as pessoas têm um valor imenso para Deus, não importa se são baixas, altas, ricas, pobres, homens, mulheres, crianças, adultos, idosos, se consegue trabalhar ou se está encostado porque não consegue trabalhar... Não importa, Deus valoriza a vida de cada pessoa e não exclui ninguém. Deus não faz acepção de pessoas. “Pois ele trata a todos com igualdade” (Romanos 2.11).

Mas há uma coisa interessante na Bíblia. Sabe, na faculdade de teologia a gente chama de inversão escatológica. Esse nome difícil significa apenas “os primeiros serão os últimos, e os últimos serão os primeiros” (Mateus 20.16). Isso significa que exatamente quem é mais desprezado é que Deus valoriza mais, é que Deus vai glorificar. O próprio Cristo assumiu forma humana e sofreu na cruz, não é verdade?!

Martim Lutero costumava falar da teologia da cruz. O que é isso?! Bom, Lutero dizia que o melhor jeito da gente olhar para Deus, o melhor jeito da gente conhecer a Deus NÃO é através da natureza. Quando nós tentamos conhecer a Deus através da natureza, nós mesmos estabelecemos os critérios do conhecimento de Deus ao invés de aceitar o critério que Deus estabeleceu. Tentar encontrar Deus na natureza é confiar em nós mesmos, e não confiar em Deus.

E qual é o critério que Deus estabeleceu para nós o conhecermos?! Esse critério foi a cruz. Deus quis ser reconhecido a partir do sofrimento e quis rejeitar a sabedoria que brota da especulação. A palavra proferida por Deus na cruz vai contra a razão, é loucura.

Esse ensinamento de Martim Lutero ganhou mais vida ainda... Deus sempre faz uma opção em favor de quem é oprimido, marginalizado, discriminado... É a pessoa que sofre igual Jesus sofreu. E muito mais do que isso, Jesus ressuscitou. Ou seja, a vida venceu a morte. Isso dá força para quem está em dificuldade.

O papel da Igreja aqui é “1) captar e experimentar a novidade de Deus presente na história humana; 2) verbalizá-la e transformá-la em Boa-Nova para o povo; 3) encarná-la e expressá-la em novas formas de vida de tal maneira que, por meio dela, o povo possa perceber, novamente, o seu alcance para a vida e despertar para a sua missão” (Carlos Mesters). Sabe de uma coisa, Deus salva... Deus nos dá forças para lutar por vida melhor, indo contra ao que o mundo está pregando. É uma nova lógica. São novos valores. Aquele que se colocada como humilde diante de Deus é que será capaz de sentir o toque de Deus e de se entregar a Deus e de viver uma nova realidade, uma nova lógica.

Agora vem o texto do Evangelho de Mateus para aumentar a nossa esperança e para nos incentivar a viver um jeito diferente. O texto do Evangelho costuma ser chamado de Sermão da Montanha, é um dos poemas mais lindos e mais conhecidos no mundo. Na Bíblia, o Sermão da Montanha aparece logo após o chamado vocacional dos discípulos de Jesus Cristo. Deus chama pessoas para seu seguimento. Essas pessoas sofrem por acolherem o chamado de Cristo, mas Deus as vê de forma diferente. São humilhadas e desprezadas pelo mundo, mas glorificadas por Deus.

Somos chamados no batismo para o seguimento de Cristo. No Batismo morremos para a lógica do mundo e nascemos para a lógica de Deus. No Batismo nos tornamos sacerdotes de Deus, ou seja, representantes de Deus no mundo. A partir do Batismo somos chamados a viver os valores do reino de Deus, baseados na fé, no amor, na esperança, na justiça.

E sabe de uma coisa, a justiça de Deus funciona de forma diferente da nossa justiça. Nós somos maus, Deus é bom. Deus troca a nossa maldade por sua bondade. Assim também, Jesus morreu para que, nele, toda a justiça de Deus fosse cumprida. Essa justiça cumprida por Cristo nos é agora outorgada. Ora, se Cristo, com sua morte e ressurreição, nos dá vida e justiça, nada mais certo que passemos a viver em união com esse Cristo, como se ele próprio vivesse em nós. Ou, nas palavras do apóstolo Paulo, “não sou eu quem vive, mas Cristo é quem vive em mim” (Gálatas 2.20).

Para terminarmos essa reflexão, só gostaria de lembrar o que significa esse “bem aventurados” que o Evangelho traz.  Bem aventurado significa feliz, quem tem paz. Paz, para a Bíblia, é ter uma vida completa e abundante. É conseguir uma boa colheita, é a mulher ter filhos, é o gado ficar forte, é ter saúde... E para a gente?! Se olhamos com seriedade para a Bíblia, que paz é essa que Deus nos oferece?! É ter vida boa, mas vida boa para todo mundo. Não para um grupinho de gente privilegiada. E é isso que a gente tem que pregar, defender e lutar para que aconteça. O reino de Deus é vida boa para todo mundo. Essa é a mensagem de Cristo. Essa é a nossa mensagem. Amém!

Sermão pregado na Comunidade Evangélica de Confissão Luterana em Vitória, no dia 30 de janeiro de 2011 (4º Domingo Após a Epifania).

Saturday, July 2, 2011

Carta Aberta à Presidência da IECLB

Senhor Pastor Presidente da IECLB, Nestor Paulo Friedrich,

“Justificados, pois, pela fé, tenhamos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, por quem obtivemos também nosso acesso pela fé a esta graça, na qual estamos firmes, e gloriemo-nos na esperança da glória de Deus”.

Com essas palavras de saudação e motivação escritas pelo apóstolo Paulo, escrevo-lhe esta carta em reação à Carta Pastoral da Presidência sobre Homoafetividade, emitida, em 24 de junho de 2011.

Como foi bem exposto, a IECLB encontra-se dividida, e essa polarização de posições em nada tem a contribuir para o diálogo e a formação de consenso dentro da nossa denominação. Também é um assunto que não se pode impor aos diversos grupos da igreja, o que poderia gerar uma crise e a conseqüente cisão. Contudo, desde a primeira carta escrita pela presidência da IECLB no ano de 1999, passaram-se doze anos sem que o diálogo tenha avançado, e a igreja permanece polarizada entre luteranos conservadores e luteranos progressistas. A manutenção dessa posição mantém as estruturas de desigualdade e priorizam a posição mais conservadora, afinal de contas, uma vez que as pessoas homossexuais não podem ser ministros e ministras da igreja, nem receber uma bênção matrimonial, pela simples razão de não haver consenso, a igreja assume um caráter conservador de exclusão.

Como bem disse o filósofo Michel Foucault: “O que não é regulado para a geração ou por ela transfigurado não possui eira, nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo tempo expulso, negado e reduzido ao silêncio. Não somente não existe, como não deve existir e à menor manifestação fá-lo-ão desaparecer – sejam atos ou palavras”. E é exatamente isso que tem acontecido, a homossexualidade não é tema para discussão e, quando vem à discussão, é primeiramente trazida pelos grupos mais conservadores, que a condenam. Enquanto isso, pessoas homossexuais continuam no anonimato, com medo de se exporem e de se expressaram (com raras expressões). Se elas não existem e não falam por elas mesmas, o diálogo nunca se concretizará.

Como a atual carta pastoral lembrou acerca de outra emitida em 2009: “não há no âmbito de igrejas evangélicas protestantes um magistério que tenha a prerrogativa de estabelecer normas éticas que deveriam ser seguidas por todos os fiéis. Nem poderia haver. Na tradição da Reforma protestante essas igrejas não (re)conhecem uma instância eclesiástica autoritativa, muito menos infalível, em questões morais, mas seus pastores e pastoras têm a responsabilidade de, baseados na Bíblia e seus valores evangélicos, orientar as pessoas implicadas ao discernimento ético, fortalecendo-as a tomarem, simultaneamente em liberdade e responsabilidade, suas próprias decisões diante de Deus”. Parece-me que, ao manter-se neutra na discussão, a igreja está, na verdade, exercendo magistério e autoridade, algo que não deveria ser exercida por igreja evangélica.

Talvez uma alternativa para o impasse em que a igreja se encontra é conviver com a falta de acordo, concedendo autonomia às paróquias e a seus ministros e ministras de decidirem por si mesmos acerca desses assuntos. É no ministério compartilhado entre ministros ordenados e presbíteros que se pode decidir o futuro da igreja. A partir do momento em que as comunidades podem decidir por si mesmas, pessoas homossexuais poderão se expressar, receber algum tipo de bênção para suas uniões ou até mesmo exercer o ministério ordenado. Tal qual aconteceu com a ordenação de mulheres, haverá comunidades que vão apoiar e outras que vão execrar esse tipo de atitude, mas ao menos haverá mais visibilidade de que tais pessoas existem na nossa igreja e precisam ser ouvidas.

Por fim, minha oração é para que Deus possa conceder sabedoria e discernimento para todas as pessoas envolvidas, em especial para as lideranças de nossa IECLB. Minha oração também está voltada àquelas pessoas que são vítimas do anonimato e do ostracismo a que são forçadas a encarar. Que o Espírito de Deus sopre sobre nossa igreja e traga conversão de corações.

Paz e bem!
Vitória, 2 de julho de 2011.

Filipe Fialho Alves

Friday, July 1, 2011

Carta Pastoral da Presidência da IECLB sobre Homoafetividade


Presidência
IECLB nº 199070/11

Porto Alegre, 24 de junho de 2011

CARTA PASTORAL DA PRESIDÊNCIA

Assunto: Sexualidade humana – homoafetividade

Estimados irmãos e estimadas irmãs em Cristo!

Esta carta pastoral foi motivada por dois fatos recentes. Primeiro, a decisão do Supremo Tribunal Federal – STF, de 5 de maio de 2011, que trata do reconhecimento jurídico das uniões estáveis de pessoas homoafetivas. A decisão do STF consiste no “reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como ´entidade familiar´, entendida esta como sinônimo perfeito de ´família´, reconhecimento que é de ser feito seguindo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”. O segundo fato é a tramitação do Projeto de Lei nº 122/2006. Se fosse aprovado na versão original, esse projeto tornaria crime a homofobia. Neste momento, o projeto continua em tramitação no congresso brasileiro.

A homossexualidade já foi tematizada em duas cartas pastorais, emitidas pela Presidência da IECLB em 1999 e em 2001. Reafirmamos o conteúdo dessas cartas. Por quê?
*reconhecemos que o grau de dificuldade para lidar com o assunto relações homoafetivas ou homossexualidade não diminuiu; um sinal disso é o fato de não termos conseguido avançar no diálogo que a Federação Luterana Mundial propôs, e que a Presidência da IECLB estimulou na década passada, para o que foi publicado e amplamente divulgado o documento Matrimônio, Família e Sexualidade Humana;
*reafirmamos o amor incondicional de Deus por nós como base essencial para abordar esse tema; cremos que as pessoas homossexuais são tão amadas e necessitam tanto da graça de Deus quanto todo ser humano (Rm 3.23s);
*por serem discriminadas e estigmatizadas, pessoas de orientação homossexual e seus familiares sofrem, e sofrem muito. As polarizações apenas aprofundam o sofrimento e não ajudam na construção de um Estado de direito em que todas as pessoas têm assegurada sua dignidade.

Resumindo, essa memória nos lembra da nossa condição de seres amados por Deus e nos conclama para o diálogo respeitoso sobre o assunto. Somente assim chegaremos a aspectos novos a serem considerados nesse diálogo e aprofundamento.

Cabe recordar aqui o que foi mencionado em outra carta pastoral, em 2009, que tratou do discernimento ético:

“não há no âmbito de igrejas evangélicas protestantes um magistério que tenha a prerrogativa de estabelecer normas éticas que deveriam ser seguidas por todos os fiéis. Nem poderia haver. Na tradição da Reforma protestante essas igrejas não (re)conhecem uma instância eclesiástica autoritativa, muito menos infalível, em questões morais, mas seus pastores e pastoras têm a responsabilidade de, baseados na Bíblia e seus valores evangélicos, orientar as pessoas implicadas ao discernimento ético, fortalecendo-as a tomarem, simultaneamente em liberdade e responsabilidade, suas próprias decisões diante de Deus”.

É a partir dessa perspectiva que a atual Presidência também evitou e evitará emitir uma posição da IECLB sem consulta e diálogo prévios com outras instâncias constituídas. Uma decisão institucional passa pela discussão que envolva essas instâncias da Igreja.

Há assuntos, como o aqui em pauta, que requerem uma discussão acerca da hermenêutica que usamos para interpretar textos bíblicos. Como pessoas evangélicas de confissão luterana, zelamos para evitar uma postura maniqueísta: deste lado está o bem, a verdade, Deus; daquele lado está o mal, a mentira, o diabo. Há questões que exigem da pessoa cristã ter que lidar com a tensão oriunda da dificuldade de dar respostas rápidas; de conviver com o debate difícil, mas sério, aberto, respeitoso. Há perguntas para as quais a resposta nem sempre é sim ou não. Não por último, a separação entre joio e trigo, quando e onde ela ocorrer, caberá ao Senhor (Mateus 13.30).

Considerando a separação entre Igreja e Estado, cabe-nos como IECLB acolher a decisão do STF. O pano de fundo dessa decisão é o empenho do Estado pela superação da discriminação de pessoas e grupos, da intolerância, do preconceito, da estigmatização de comportamentos diferentes que, tantas vezes, culminam em violência, sofrimento, perseguição e, inclusive, morte. É fundamental que não percamos esta dimensão: a intolerância é fonte de julgamentos apressados, incompreensão, dor, sofrimento. Do ponto de vista do Estado, a decisão do STF quer impedir isso.

Ao mesmo tempo em que nos cabe acolher a decisão do STF, precisamos refletir intensamente acerca dos desdobramentos desta decisão para a IECLB. A IECLB tem em seu “Guia da vida comunitária: Nossa Fé – Nossa Vida” as linhas básicas que pautam os seus fundamentos doutrinários, confessionais e legais para sua atuação. Este documento, aprovado em Concílio da Igreja, reflete o momento atual da caminhada da Igreja à luz de sua missão. Qualquer mudança nesta área, inclusive acerca da benção matrimonial ou qualquer outra prática, passa por ampla discussão em todas as instâncias da IECLB.

A Presidência da IECLB
- espera que o Estado brasileiro, através de seus poderes, assegure e concretize os direitos fundamentais da liberdade de pensamento, de crença e de manifestação para todos os cidadãos, conforme estabelecido na Constituição Federal;
- entende que essa garantia dos direitos fundamentais é imprescindível para coibir tanto a violência decorrente de posturas extremas quanto querer calar a voz dos que buscam o diálogo ancorado em argumentos sólidos, inclusive para discordar;
- acredita que somente vamos crescer e avançar no entendimento desse tema complexo, se a opção for por uma postura de respeito mútuo pelas posições distintas, de diálogo franco, desarmado e fraternal, de superação da exclusão e, sobretudo, de opção radical por manifestações e gestos que deem lugar à graça e ao amor de Deus, graça e amor que nos alcançam por causa da Sua misericórdia, e não porque as mereçamos;
- reafirma a sua opção radical por uma gestão do cuidado que, em relação ao tema Matrimônio, Família e Sexualidade Humana, reconhece que a graça de Deus dispõe a Igreja de Jesus Cristo para uma caminhada conjunta, sinodal, que faz do diálogo um instrumento imprescindível. Desse modo, conseguiremos avançar e crescer na fé, pela qual somos pessoas justificadas e movidas por Deus para optar por aquilo que promove a Cristo.

Em Cristo,

Nestor Paulo Friedrich
Pastor Presidente

Thursday, May 26, 2011

Sexualidade, silêncio, exclusão: é nojento!


“O que não é regulado para a geração ou por ela transfigurado não possui eira, nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo tempo expulso, negado e reduzido ao silêncio. Não somente não existe, como não deve existir e à menor manifestação fá-lo-ão desaparecer – sejam atos ou palavras. [...] Assim marcharia, com sua lógica capenga, a hipocrisia de nossas sociedades burguesas. Porém, forçada a algumas concessões. Se for mesmo preciso dar lugar às sexualidade ilegítimas, que vão incomodar noutro lugar: que incomodem lá onde possam ser reinscritas, senão nos circuitos da produção, pelo menos nos do lucro. O rendez-vous e a casa de saúde serão tais lugares de tolerância: a prostituta, o cliente, o rufião, o psiquiatra e sua histérica – estes ‘outros vitorianos’, diria Stephen Marcus – parecem ter feito passar, de maneira sub-reptícia, o prazer a que não se alude para a ordem das coisas que se contam; as palavras, os gestos, então autorizados em surdina, trocam-se nesses lugares a preço alto. Somente aí o sexo selvagem teria direito a algumas das formas do real, mas bem insularizadas, e a tipos de discurso clandestinos, circunscritos, codificados. Fora desses lugares, o puritanismo moderno teria imposto seu tríplice decreto de interdição, inexistência e mutismo” (Michel Foucault).

“Não aceito propaganda de opções sexuais”. Com essas palavras, a presidente Dilma Rousseff decidiu suspender a produção e a distribuição do kit anti-homofobia, que estava para ser distribuído às escolas de todo o país. Após a derrota na votação do novo Código Ambiental, o governo sucumbiu às pressões dos grupos religiosos, que ameaçavam aderirem à proposta de abertura da CPI contra o ministro Antônio Paloci e de obstrução de pautas de votação de interesse da base governista. Infelizmente, está claro que a opção do governo foi política, por medo de novas derrotas no Congresso. De qualquer forma, gostaria de tecer algumas considerações.

Primeiramente, as escolas já fazem propaganda de opções sexuais e modelos familiares. A despeito das novas configurações de família, os livros didáticos a trazem como pai, mãe e filhos, hierarquicamente relacionados: o pai, provedor e chefe da família; a mãe, responsável pela casa e pelo cuidado dos filhos; e estes, devedores de plena obediência aos pais. A apresentação desse único modelo desrespeita as famílias monoparentais, os casais homoafetivos, as famílias com pais ausentes e todas as demais excluídas do modelo nuclear, cuja ascensão se deu apenas no século XIX.

O kit anti-homofobia é uma oportunidade de se naturalizarem as relações homossexuais, tal qual já foram naturalizadas as relações heterossexuais. É importante frisar que nenhuma relação sexual ou padrão de gênero é natural por si, mas se tornam naturais através do valor que damos a eles. Isso é tanto verdade que existem hermafroditas e transsexuais, o que facilmente desestrutura essa visão dualista de gênero. A heteronormatividade foi construída social e culturalmente, e pode ser desconstruída.

A rejeição ao kit demonstra um problema de visão de mundo muito grande e parte do pressuposto de que a heterossexualidade é melhor e mais desejável que a homossexualidade. Mas isso é um juízo de valor sem fundamento. O que há de errado em “influenciar as criancinhas a adotarem um comportamento homossexual”? Se esse kit vier a influenciar de alguma forma, não há problema moral nisso, pois não há fundamento para olhar para a heterossexualidade como algo melhor e mais desejável. Considerando que o ser humano é dotado de sexualidade e que essa sexualidade pode se manifestar das mais diversas maneiras, eu acredito apenas que mais jovens se permitiriam um relacionamento homossexual. Mas isso não é um problema, pois rejeitar isso seria mais uma vez dar força è heteronormatividade. Em contrapartida, esse kit só abriria espaço para outros modelos de relacionamentos e famílias a que as crianças são pouco expostas, o que certamente ajudaria a diminuir o preconceito.

Mas a lógica dos grupos religiosos é outra. Como bem disse Michel Foucault, “o que não é regulado [...] não possui eira, nem beira, nem lei”. É assim mesmo, se ninguém discutir como a violência contra os homossexuais (tanto física quanto simbólica) se dá na sociedade, eles não serão vítimas de discriminação, pois ninguém entenderá como discriminação a “defesa dos valores da família” em detrimento do bem estar físico, emocional e espiritual de uma parcela da população, e mais uma vez sexualidades desviantes devem ser exercidas na clandestinidade, em ambientes destinados especificamente a elas.

Essa é a lógica desses grupos: deixar seres humanos comerem o pão que o diabo amassou para ver se eles voltam à uniformidade exigida pelo fundamentalismo. É nojento! Só este ano, 65 homossexuais foram mortos no Brasil pelo simples fato de serem homossexuais.

Abaixo, segue reportagem sobre a prática da homofobia na sociedade.

Termino essa postagem apenas com essa frase: É NOJENTO!!!!


Saturday, May 7, 2011

Falando em direitos homoafetivos


O Supremo Tribunal Federal concedeu aos casais homoafetivos o direito de serem reconhecidos como entidade familiar, para todos os efeitos jurídicos decorrentes. Foi um primeiro passo em direção à plena cidadania, mas ainda há muito a trilhar. Dentre algumas vitórias pendentes está a aprovação do Projeto de Lei da Câmara 122/2006, que define os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero.

O presente projeto tem como objetivo tipificar diversas condutas discriminatórias como crime, garantindo a proteção àquelas pessoas que, por motivo de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero, estejam em situação passível de sofrer preconceito. Isso se faz necessário para garantir o expresso no artigo 7º. da Declaração Universal dos Direitos Humanos (“Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei. Todos têm direito a proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação”).

Além disso, o princípio da isonomia previsto no caput do artigo 5º. da CF significa muito mais que evitar tratamento desigual, mas sim tratar de forma igual aos iguais e de forma diferente aos diferentes, na medida da desigualdade. Por essa razão, criar proteção legal a certos seguimentos da população não é criar direitos especiais, mas garantir igualdade de tratamento e proteção àqueles que, de alguma forma, estariam expostos à discriminação. Mais ainda, esse PLC é um passo adiante na promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (artigo 3º., inciso IV, da CF).

Surge, contudo, a partir daí, questionamentos por parte de grupos religiosos contrários à inclusão da proteção contra discriminação por motivo de orientação sexual e identidade de gênero. Alegam que tal proteção seria uma afronta à liberdade de expressão e de religião, uma vez que não seria mais possível falar acerca da “prática homossexual” como pecado. Seria então uma “ditadura gay”?

Pessoalmente, vejo a expressão “ditadura gay” como uma grande ironia. Afinal de contas, quem tem seus empregos, seu bem-estar físico e psicológico, sua integridade física e moral, sua convivência com familiares e amigos e muitos outros direitos afetados por essa lei? De forma alguma são as minorias sexuais.

Pois bem, analisemos o projeto de lei na perspectiva da hierarquia das normas. É sabido que, nos Estados democráticos de direito, como é o caso do Brasil, existe uma lei maior, que é a Constituição Federal, a que todas as demais normas devem obediência. Assim sendo, uma lei infraconstitucional deve estar de acordo com os dispositivos da Constituição para que tenha validade. É um de seus pressupostos.

Por essa razão, e levando em consideração que a liberdade de expressão (vedado o anonimato, cabe salientar aqui) e a liberdade religiosa estariam garantidas pela constituição. Se a homossexualidade é conduta pecaminosa em alguma religião, esta poderá exercer o seu magistério no âmbito eclesial e litúrgico, bem como expressar publicamente sua opinião.

Não poderá, contudo, tratar a pessoa homossexual com falta de respeito, tal qual o fez o então presidente da Convenção das Assembléias de Deus do Estado do Espírito Santo, no ano de 2007, ao falar, num jornal de grande circulação, que os homossexuais “são piores que os animais do campo”. Cometeu duplo pecado: (1) contra os animais do campo, pois nada tem de diabólicos por si; e (2) contra as pessoas homossexuais, que o fato de ser homossexual não determina o caráter de ninguém. Tampouco poderá tratar condutas sexuais desviantes de forma distinta umas das outras.

Seria, então, a norma inconstitucional? Não. Deve-se lembrar que dentro da própria Constituição existe uma hierarquia entre princípios e normas. Os princípios são orientações programáticas que sobrepujam as próprias normas positivadas. Assim sendo, a Carta Magna aponta a dignidade da pessoa humana como um dos princípios da República Federativa do Brasil. Com isso, facilmente pode-se antever que as normas de direitos fundamentais, tais quais a liberdade de expressão (vedado o anonimato) e a liberdade de culto, devem ser interpretadas como sujeitas ao critério da dignidade da pessoa humana. Sempre que esse critério não for satisfeito, os outros direitos devem ser revistos.

Até o momento, tentei apresentar a validade jurídica do projeto de lei. Agora, passo aos aspectos da teologia e da política. Muito bem expressou Adela Cortina ao dizer que “só pode sentir-se parte de uma sociedade quem sabe que essa sociedade se preocupa ativamente com sua sobrevivência, e com uma sobrevivência digna” (2005, p. 52). De pronto, já se percebe que alguém que tem seus direitos básicos negados (emprego, propriedade, integridade física e emocional, proteção a seus relacionamentos etc.) não pode sentir-se totalmente parte de uma sociedade. E é exatamente isso que vem acontecendo com as pessoas homossexuais, em especial aquelas de menor poder aquisitivo e mais vulneráveis à lógica do mercado.

Aqui me faz lembrar o pensamento de Habermas, citado por Julio Zabatiero, sobre o qual se afirma que, em sociedades pós-seculares, tanto pessoas religiosas quanto não religiosas devem abrir mão de um aspecto de suas convicções. Ressalto aqui o que as pessoas religiosas devem abrir mão: de uniformização. Muito pelo contrário, devem reconhecer que sempre haverá um dissenso numa sociedade pluralista, e que esse dissenso é bom. Por essa razão, pessoas homossexuais têm o direito à existência digna, inclusive como médicos, babás, enfermeiros e professores dos filhos de casais religiosos.

O evento fundante do Cristianismo e sua mensagem devem informar a teologia que fazemos acerca das relações homoafetivas e da proteção dos direitos dos homossexuais. A postura de Jesus Cristo sempre foi a da inclusão: tocava pessoas doentes, comia com publicanos e pecadores, acolhia prostitutas, ignorava os preceitos de guarda do sábado... ou seja, desrespeitava as normas religiosas que, de alguma forma, excluíam pessoas de vida digna. Além disso, as curas e exorcismos que acompanharam o ministério de Jesus são sinais do reino de Deus e, como tais, representam que, a partir dessa nova realidade, todos devem ter acesso a uma vida digna e íntegra, ou seja, quando o reino de Deus invade a nossa realidade, as promessas de paz e salvação se tornam realidade.

Aqui cabem duas observações: (1) paz tem a ver com abundância, com ter comida na mesa, com a fertilidade do solo, dos animais e das mulheres, tem a ver com vida boa; e (2) salvação e saúde são termos de significado muito próximos. Veja-se pelas curas de Jesus, costumeiramente acompanhadas pela expressão: “a tua fé te salvou”. Salvação não é evitar um possível inferno, mas encontrar justiça, paz e integralidade, uma vida de sentido diante de Deus e do próximo.

Nessa perspectiva, pessoas homossexuais estão sendo excluídas do reino de Deus pelo simples fato de existirem. Se levamos a sério o ministério de Jesus na terra, e se acreditamos em paz e salvação inauguradas pelo evento Cristo, não há como continuarmos negando vida digna e proteção jurídica às minorias sexuais. Acredito que a decisão do STF de reconhecer as relações homoafetivas como uniões estáveis é um primeiro passo, mas ainda há muito a ser trilhado.

Cabe salientar, por fim, que o presente projeto não se restringe apenas à proteção a pessoas homossexuais, mas a uma série de pessoas cujo direito à existência digna é negado diariamente, inclusive por grupos religiosos.

Thursday, May 5, 2011

Deusas em Israel?!

Hoje o professor de Hebraico Bíblico citou um sítio arqueológico do séc. 8 ou 9 a.C. da Península do Sinai que me chamou a atenção. Chama-se Kuntilet-Ajrud. A imagem abaixo foi encontrada numa cerâmica e embaixo dela estava escrito: "Iahweh de Samaria e sua Asherah". Isso indica a existência de um templo de adoração a Iahweh em Samaria, capital de Israel (Reino do Norte). Mas o que mais me chamou a atenção foi essa deidade sentada, a Asherah. Seria esposa de Iahweh?! Eu já sabia que os diferentes povos que se fixaram nas regiões montanhosas da Palestina, em fuga dos sistemas de cidade-Estado, adoravam diferentes deuses e aquela Liga Tribal permaneceu politeísta por séculos, somente havendo uma tentativa de centralização do culto num único deus a partir do momento em que os sacerdotes de Judá assumem o poder. Mas a presença de uma deusa é novidade para mim.

Outra coisa que me chamou a atenção: a presença bovina na imagem. Por acaso seriam representações teromórficas de divindades? Sei que touros e bezerros representam força, e que há narrativas de adoração a bezerros no Antigo Testamento. Encontramos, então, outros deuses?

Por fim, os órgãos genitais avantajados dos deuses masculinos, chegando até a altura dos joelhos, demonstram a importância da fertilidade (da terra, dos animais, dos seres humanos, dos próprios deuses...) para aquele povo.

Jogo os dados e deixo as conclusões por conta de vocês.

Friday, April 29, 2011

Deus dando sonoras gargalhadas

Mary E. Hunt


No começo Deus se divertia.
Ela soltava sonoras risadas e
ria mais ainda porque era bom.
Ela reclinava-se na cadeira e sorria.
Ela batia palmas de satisfação
e imaginava suas irmãs dançando.
Ela não fazia outra coisa
senão divertir-se, nada mais.

Deus sabia que havia trabalho a ser feito
- um mundo a ser criado,
pessoas a serem plasmadas
e todo um cosmos a ser planejado.
Ela viu de relance que a criação
iria incluir a mania de fazer reuniões
e que haveria injustiças a corrigir,
e mesmo assim ela ria,
sabendo que no final
tudo seria alegria e divertimento.

Ela não explicou a ninguém em particular
que sua intenção era que a vida fosse só
divertimento: - alegria e prazer
é o primeiro princípio.
Ela sabia que outras supostas divindades
davam ênfase ao trabalho e à obrigação.
Ela refletiu astutamente que,
se a meta era alegria para todos,
todo mundo poderia descansar,
relaxar, pelo menos uma parte do tempo.
Só pensar nisso levou-a
a abrir-se num largo sorriso.

Anos-luz depois,
quando a criação veio à existência
e as pessoas começaram a levar a vida
com trabalho árduo e suor,
ela notou que seu primeiro princípio
fora substituído pelo trabalho e pela dor.
Então ela enviou um lembrete de seu legado.
Deu-lhe vários nomes:
férias, lazer, descanso, recreação, divertimento.
Alguns acharam que era um resquício
de épocas passadas.
Mas Deus sabia que era a coisa real.
Ela deu-lhe o nome de salvação.

Sunday, April 24, 2011

Cruz e Ressurreição



1. “Mas vós, quem dizeis que eu sou?” (Marcos 8.28). Essa pergunta que Jesus coloca diante de seus discípulos é deveras perturbadora. Jesus de Nazaré pede aos seus discípulos uma afirmação do que eles acreditavam acerca do seu mestre. Na história do cristianismo, muito se tem falado sobre quem é esse Jesus e o significado de sua trajetória. Nesse domingo de Páscoa, gostaria de compartilhar algumas reflexões sobre o significado da morte e da ressurreição de Jesus para nós, cristãos do século XXI.

2. Certamente, pensar no significado da morte e ressurreição do nosso mestre nos leva também a pensar sobre a salvação que ele nos oferece. Nos séculos XI e XII, desenvolveram-se diversas propostas que propunham explicar o papel da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo na salvação que nos foi conquistada. Nesse momento, o que estava em jogo não era a encarnação de Cristo, mas o propósito da cruz.

3. Anselmo de Cantuária (1033 – 1109 d.C.) parece ser o responsável por uma doutrina da satisfação dos pecados. Para ele, o caráter perfeito de Deus não pode tolerar o pecado. Já que Deus deseja entrar em comunhão conosco, e sendo nós pecadores e, portanto, incapazes de nos achegarmos a ele, Deus mesmo se fez humano. Na pessoa de Jesus Cristo, o abismo que nos separava de Deus, ou o abismo entre a nossa iniqüidade e a natureza perfeita de Deus, foi retirado. Com sua morte na Cruz, Cristo toma sobre si o castigo pelos nossos pecados, satisfazendo a justiça divina, e faz com que a restauração da comunhão com Deus seja possível. Anselmo apresenta um Deus muito preocupado com a justiça, mas que dá pouco espaço para a misericórdia. Esse não seria um Deus do templo, em vez do Deus de Jesus Cristo, quem viveu e pregou os valores do reino?

4. Trinta anos depois, a posição de Anselmo foi questionada. Pedro Abelardo, teólogo escolástico francês, problematiza: “Como a morte do seu filho inocente pode tanto agradar a Deus Pai para que, através dela, ele possa se reconciliar conosco?”. Para ele, o amor de Cristo, demonstrado nos evangelhos, nos impulsiona a responder à altura. Quando olhamos para o amor de Cristo por Deus, sua submissão à vontade do Pai, sua preocupação com os outros e sua morte na Cruz (um ato de perfeito amor, segundo Abelardo), seremos inspirados a viver uma vida igual à de Jesus. Mas até que ponto esse modelo ético nos permite enxergar o mundo de ilusões e decepções a que estamos expostos? Se seguir a Jesus também significa ser vítima, então as pessoas marginalizadas e oprimidas devem aquiescer à sua situação, aceitando-se como vítimas?

5. Irineu e Martim Lutero já pensam na ressurreição de Jesus como vitória sobre Satanás. Pressupõe-se que Deus está em batalha contra as forças de Satanás. A morte de Jesus na cruz foi uma vitória das forças do mal. Mas a ressurreição representa a vitória definitiva e final sobre Satanás. Infelizmente não é possível ver a vitória de Deus sobre Satanás no mundo de hoje. Mas pensar que Jesus Cristo venceu a morte e as estruturas contrárias à vida nos dá esperança pela vitória contra os poderes que hoje ameaçam a vida.

6. Nesse contexto, gosto de pensar que Jesus assumiu uma ética do risco, ou seja, sua postura ética foi de tal forma coerente e contrária às estruturas de morte que o fim só poderia ser um: a cruz. Numa sociedade dominada pelo Império Romano, na qual a maioria da população era explorada por pesados impostos cobrados tanto pelo império quanto pelo templo, o judeu palestino que ensinava subversão era indesejado. Jesus conhecia as conseqüências de suas ações; mesmo assim, trabalhou pela cura, salvação e libertação do povo. Pensar em Jesus como alguém que assumiu uma ética do risco nos ajuda a entender que Deus não crucificou seu Filho, mas foram os próprios seres humanos que cometeram esse ato violento. A cruz é símbolo do pecado humano, não de um Deus abusivo.

7. A cruz também é símbolo da vitória de Cristo sobre a morte. A partir da ressurreição, a morte não prevaleceu, mas sim a vida. Mais do que vitória sobre a morte, a ressurreição de Cristo representa a vitória sobre o mal e todas as estruturas de morte que assolam a humanidade. O Cristo ressurreto continuou a obra de Jesus de Nazaré: curar, salvar, libertar... A Igreja de Cristo também continua essa obra, operando sinais do reino de Deus, assim como seu mestre operou.

8. Neste domingo de Páscoa, minha oração é que sempre nos lembremos desses eventos e passemos a viver uma vida que responda à altura da morte e ressurreição de Cristo. Da mesma forma que Deus derrotou o mal, também nós podemos derrotar o mal hoje, operando sinais do reino de Deus.

Saturday, April 23, 2011

Religião e Esfera Pública


O papel da religião na esfera pública é motivo de controvérsia. Desde o Iluminismo, defende-se que a religião deve permanecer completamente alheia a qualquer discussão política. Quando muito, deve traduzir sua fé em linguagem secular para, assim, poder entrar na esfera pública com algo objetivo a dizer. De início, encontramos nessas posições uma confusão entre as relações política/religião e instituição política/instituição religiosa. Nunca religião e política andaram dissociadas, mas é desejável que suas instituições subjacentes caminhem independentes.

Isso se deve, em grande razão, pelo fato de a religião tratar do simbólico e, assim, oferecer orientações axiológicas, área esta com a qual o racionalismo moderno pouco contribui. Segundo Gramsci, “a luta em torno do simbólico e das representações do mundo não se apresenta como um aspecto marginal, mas aparece como parte constitutiva da luta política em favor de mudanças estruturais” (BITTENCOURT FILHO 2010, p. 141). Continuando, José Bittencourt Filho (2010, p. 142) afirma:

“Ao administrar a relação entre o sagrado e o profano, a Religião organiza as ambigüidades, as contradições, e os conflitos latentes e, dessa maneira, exorciza o caos (ao conferir sentido), restaura as relações desgastadas (por meio da comunhão de ideais) e (re)infunde a esperança utópica (ao rearticular a coesão)”.

Como exemplo desse ímpeto transformador, temos a inserção, nos anos setenta, das ciências sociais como mediação hermenêutica para a teologia latino-americana. Consequentemente, mesmo numa sociedade capitalista, as relações de poder e dominação passaram a ser discutidas e questionadas no âmbito eclesial. Surgiram diversas pastorais e movimentos populares, tanto na igreja católica romana quanto nas igrejas protestantes.

Talvez essa influência da religião sobre a política na sociedade brasileira contemporânea tenha chegado ao auge com a candidatura de Anthony Garotinho à presidência, no ano de 2002. Evidentemente que essa candidatura representa outro movimento religioso, que não aquele iniciado na década de setenta, mas é conseqüência do aumento de grupos cristãos conservadores e fundamentalistas, cuja visão de mundo está cercada por idéias conquistadoras e proselitistas, próprias das missões evangélicas de diferentes períodos no Brasil.

Daí, surgem as perguntas: a religião tem legitimidade para entrar na esfera pública com o seu discurso inalterado? Quais são os limites da religião nessa esfera pública? Para Habermas, a religião só pode entrar na esfera pública se traduzir seus conceitos para uma linguagem secularizada. Contudo, há objeções a esse posicionamento.

Lembro aqui a necessária distinção entre política/religião e instituição política/instituição religiosa. Estas devem caminhar separadas em Estados democráticos de direito, com o fim de garantir a igualdade de tratamento para todos os cidadãos. Contudo, política e religião não podem andar separadas, pelos fatos e fundamentos a seguir expostos.

“Na sociedade pós-secular, o Estado democrático de direito é leigo, entendido este termo em sentido amplo e não só religioso, de modo que deve exercer uma forte neutralidade em relação às concepções abrangentes sobre a realidade presentes no mundo da vida. Somente exercendo tal neutralidade é que se pode conseguir justiça política na esfera pública que, em sociedades democráticas, exige a plena e igual participação de todos os cidadãos, independentemente de suas idéias amplas sobre a realidade” (ZABATIERO 2008, p. 145).

É exatamente por ter que se manter neutro diante das diferentes cosmovisões que o Estado deve dar ouvidos à religião, com sua linguagem e pressupostos próprios. Afinal de contas, o racionalismo muito fez para entender o mundo objetivo, mas pouco tem a apresentar no seu aspecto valorativo.

“Dentro do conceito pluridimensional da razão, poder-se-ia dizer que a fé é mais ajustada para a produção de sentido com vistas a finalidades expressivas e axiológicas; menos ajustada, consequentemente, à produção de sentido com vistas a fins instrumentas e estratégicos” (ZABATIERO 2008, p. 156).

Assim sendo, a sociedade deve garantir a liberdade religiosa e a pluralidade de imagens do mundo. Para tanto, à pessoa religiosa exige-se que reconheça que sempre haverá um nível de dissenso, o que é saudável num mundo pluralista. À pessoa não-religiosa, por sua vez, exige-se que reconheça a validade e legitimidade do discurso e do conhecimento religioso, tentando entender seu viés e lógica.

REFERÊNCIAS

BITTENCOURT FILHO, José. “Da política de Deus: em ensaio sobre democracia e religião” Revista Reflexus. 04. Vitória: Faculdade Unida, 2010, p. 127-168.
ZABATIERO, Julio Paulo Tavares. “A religião e o debate público”. Cadernos de Ética e Filosofia Política. 12. São Paulo: USP, 2008, p. 139-159.

Tuesday, April 19, 2011

Teologia Indecente

Esse blog foi inspirado no pensamento de Marcela Althaus-Reid, teóloga argentina que exerceu sua carreira docente na Universidade de Edinburgo, Escócia, até falecer em 2009. Sua proposta marginal é instigante e enriquecedora. Em homenagem a essa mulher admirável, criei este blog e relembro, abaixo, entrevista concedida à revista Época.


Teologia indecente
Polêmica e provocadora, a professora de Ética Cristã da Universidade de Edimburgo reivindica um Cristo bissexual

ELIANE BRUM



No fim dos anos 90, a teóloga Marcella Althaus-Reid começou a escrever um livro para ela e para seus amigos. Era um desabafo de quem, ainda na infância, sentia que não cabia em nenhuma fôrma: nem a da família, nem a da sociedade. O livro fez tamanho sucesso em particular que ela foi convencida a publicá-lo. Indecent Theology (Teologia Indecente) foi lançado no Reino Unido em 2000 e Marcella nunca mais parou de produzir polêmica. No ano passado, ela botou no mercado outro livro provocador: The Queer God (O Deus ''Esquisito''). A palavra inglesa queer é habitualmente traduzida como ''gay'', mas Marcella a usa no sentido original da Cultura Queer, um movimento que surgiu em Londres e Nova York no fim do século XX e ganhou importância na política e no comportamento. Nele, Queer é compreendido como aquilo que está fora da possibilidade de formatação ou definição, para além da ordem. É transgressor, mas também indefinível.

Os dois livros de Marcella - há mais três no prelo - giram em torno desse pensamento, ainda pouco conhecido no Brasil. Marcella defende a idéia de que a teologia precisa resgatar o que é tradicionalmente excluído: não só os pobres, mas a sexualidade. Propõe uma teologia ''sem roupas íntimas'', contesta a ''ideologia heterossexual'' da Bíblia e lança um Deus de muitas faces - à imagem e semelhança de todos e de nenhum em específico. Provocadora - por convicção e por marketing -, essa argentina convertida em escocesa, criada na religião protestante quacre, esteve no Brasil pela primeira vez no fim de agosto, a convite da Universidade Metodista de São Paulo. Fez conferências e esvaziou as livrarias paulistanas dos livros do poeta Glauco Mattoso, de quem é fã confessa. Deu a seguinte entrevista a ÉPOCA.


Marcella Althaus-Reid
Fotos:
Roberta Luckmann/ÉPOCA
Dados pessoais
Nasceu em Rosário, Argentina. Vive na Escócia há 18 anos. Tem 52 anos

Carreira
Com Ph.D. em Teologia, é professora da Universidade de Edimburgo, onde leciona Ética Cristã e Teologia Prática

Livros publicados
Indecent Theology (2000), The Queer God (2003). Ainda em 2004, vai lançar Da Teologia Feminista à Teologia Indecente. Nenhum deles foi traduzido para o português

ÉPOCA - Você diz que a Teologia Indecente é como levantar as saias de Deus. O que isso significa exatamente?
Marcella Althaus-Reid -
A Bíblia está cheia de metáforas sexuais. O cristianismo vem de uma metáfora sexual - um Deus que tem amores com uma mulher e dessa relação amorosa nasce Cristo. Sai tudo de uma matriz sexual que querem sempre dessexualizar. Uma nuvem, uma pomba, um anjo. E essa mulher é comprometida, aparece com uma gravidez que não sabem de onde vem. ''Mas quem é teu pai?'', deviam dizer a Jesus quando ele andava por Israel. Então, em vez de rechaçar a metáfora sexual, eu brinco com ela. O cristianismo entende e organiza o mundo a partir de uma ideologia heterossexual: a família, a subordinação, a dualidade. Minha proposta é pensar uma fé e uma teologia a partir de experiências sexuais diferentes. Não a dos gays, ou a das lésbicas, ou a dos travestis, mas a partir da Teoria Queer, uma espécie de guarda-chuva que abriga toda a diversidade sexual. Quero saber, por exemplo, como um travesti se relaciona com o sagrado, como é o Deus do transexual. Minha teologia não é sobre igualdade, é sobre diferença.

ÉPOCA - Como é o Deus ''Queer''?
Marcella -
É um Deus que não está terminado. Temos Deus saindo do armário ao dizer ''não posso ser Deus, tenho outra identidade, preciso ser homem''. Não é um gesto de doação aos homens, mas uma necessidade de Deus de revelar-se. Dizer: ''Sou frágil, sou humano''. Sair desse armário lhe custou caro. Essa é uma interpretação nova de Deus, a partir de outra maneira de se relacionar com a divindade. Essas metáforas do Deus perfeito, da sabedoria suprema, do terminado vêm de uma maneira de pensar pré-moderna. Eu trabalho com o pós-moderno. O Deus Queer é um Deus inacabado. Em processo, ambíguo, de múltiplas identidades, que nunca terminamos de conhecer porque, quando o abarcamos, escapa, há mais. Não quero um Deus do centro hegemônico, um rei que vem te visitar na favela, te dá a mão e diz: ''Eu sou Deus, tenho um reino e sou tão bom que venho te visitar. Mas, agora, dá licença que tenho de voltar ao Reino dos Céus''. Falo de um Deus que abre seu armário e diverte seus amigos, dizendo: ''Agora sou Marlene Dietrich''.

ÉPOCA - Por que indecente? O que, então, é decente?
Marcella - Eu vivi na Argentina durante toda a ditadura militar. A dialética decente-indecente foi muito importante para minha geração. Os militares tinham uma moral sexual muito restrita. E tudo isso no meio de um discurso político, mas também religioso: o discurso da decência. E nada mais indecente, no sentido ruim da palavra, do que o que eles diziam e faziam. Então eu tomo o oposto. Se isso é decente, então sou indecente. Não quero incluir-me. Eu quero permanecer às margens e quero reivindicar um Deus que é marginal. Sou indecente, graças a Deus.


''A Teologia da Libertação é autoritária. Tem estrutura colonial, da Igreja européia. O pobre é visto como o nativo, a criança, o inocente. Tem de ser pobre e inocente, não pode ser pobre e gay ''

ÉPOCA - Você fala de um Bi-Cristo, um Cristo bissexual…
Marcella -
Que sabemos da sexualidade de Jesus? Nada. O que dizem os Evangelhos? Dizem que foi circuncidado. Que falava nas sinagogas e conhecia as escrituras. Esses são os poucos detalhes que sabemos de Jesus. Eu sei que Jesus foi homem, mas gosto de dizer que sabemos que foi homem por uma ou duas coisas. Da sexualidade de Jesus não sabemos nada. Porque ser homem não significa ser homem. Então, por que não assumir que Jesus teria outra sexualidade? E qual poderia ter sido? Busco elaborar um Bi-Cristo. Mas não para buscar experiências sexuais. É a forma de pensar que me interessa. Bissexualidade é tabu. Os gays não gostam. As lésbicas não gostam. Dizem: ''Decida-te''. Aí pensei em levantar essa bandeira que, por ser crítica, é muito interessante. O Bi-Cristo é um Deus que está no meio, pode entender as diferenças e amá-las. Um Deus que não pode ser encaixado em uma identidade fixa porque nunca se define completamente. É um Messias amplo.

ÉPOCA - Você é uma crítica da teologia feminista. Diz que o gênero não é uma mudança estrutural, apenas uma troca de roupa. Como é isso?
Marcella -
Critico a teologia feminista porque é uma teologia de igualdade. E eu busco uma teologia da diferença. Deus não é mãe. Botar a mãe no lugar do pai é só uma troca de roupagem. Não me interessam as metáforas de maternidade e de paternidade. São coloniais. Madre Espanha, Madre Portugal, Madre Igreja. Elas implicam a existência de um menor de idade. E eu quero sair disso. 

ÉPOCA - Você também diz que a Teologia da Libertação está estagnada...
Marcella -
Está estagnada, mesmo, em todo o mundo. Mudou o cenário político. A Teologia da Libertação tinha uma análise marxista antiga que não pode pensar bem os temas da globalização, que é um fenômeno mais cruel. Continua fixa numa perspectiva histórica dos anos 70. É um discurso do pobre, não do excluído, que é outra história. É muito bonito dizer que existe um cristianismo da América Latina, uma Igreja do pobre, comprometida. Mas o que foi proletariado está hoje nas ruas, não tem onde viver. A Teologia da Libertação perdeu tudo isso. Os teólogos ainda querem falar sobre fábricas e operários, mas fábricas e operários não fazem mais parte da realidade.

ÉPOCA - Você acusa a Teologia da Libertação de autoritária...
Marcella -
Ela é. Tem estrutura colonial, da Igreja européia. O pobre é visto como o nativo, a criança, o inocente. Tem de ser pobre e inocente, não pode ser pobre e gay. Tem de ser pai de família. As mulheres têm de dizer obrigada, padre, o senhor é muito amável. Mas o pobre rebelde, que não diz por favor, mas diz ''me dá o que eu preciso'', instala toda uma tensão de poder. O teólogo da libertação é paternal, é bom, sempre concede, não te trata por igual. Aí há um problema. Eu sempre digo: onde estão os discípulos de Leonardo Boff, de Gustavo Gutiérrez? Não há. Nem sequer formaram discípulos porque são muito centrados em si mesmos. Eu entendo que no tempo da ditadura se necessitava de líderes, mas os téologos da libertação não fizeram a transição para a democracia.

ÉPOCA - E o que vai ocupar esse vazio, a Teologia Indecente?
Marcella -
Não estou questionando o compromisso com os excluídos, mas quem são eles. Teologia é uma caminhada. Temos de seguir. A Teologia Indecente é uma forma de seguir, mas há outras. Elas tratam de refletir todas as lutas, não só a luta do pobre. Mas a luta do travesti, do negro, do amarelo, de todos. O mais importante, penso, é que não se façam ideologias, que são sempre impostas. O único jeito é o diálogo dos diferentes.

ÉPOCA - Mas o fundamentalismo não pára de crescer...
Marcella -
Marx dizia que a religião é o ópio do povo. Mas ópio, no tempo de Marx, era remédio, acalmava a dor. Por isso eu sou cuidadosa antes de sair tachando de falsa consciência. Se você precisa sobreviver 24 horas por dia e não tem nada, necessita agarrar-se a algo religioso, sólido, fundamental. É uma necessidade emocional num mundo sem sentido. Que seja falsa consciência, que seja ópio, aplacar a dor não é pouco. Tem de respeitar as pessoas quando elas dizem que precisam rezar o rosário para seguir a vida. Basta ver que o pentecostalismo, a idéia de que o Espírito Santo cura, cresce nos países onde a Medicina é cara. Os dons do Espírito Santo são materiais, refletem uma vida material difícil. Por outro lado, há coisas interessantes nesse processo, como a ruptura com um tipo de igreja burocrático, uma espiritualidade intelectual, que não se relaciona com o povo.

ÉPOCA - No Brasil, o Supremo Tribunal Federal se prepara para votar uma ação que permite a interrupção da gestação em casos de anencefalia. A Igreja Católica se opõe. Por que você acha que esse tema é tão caro à Igreja?
Marcella - A Igreja Católica, como outras, tem um problema com a definição de vida. Preocupa-se com o feto, mas não com as mulheres que morrem nas macas do aborto. Tem um conceito de vida estranho e seletivo. É misógina. A mulher é inimiga, representa a tentação, a queda. O homem tem algo que representa a divindade, a mulher não. Por isso não pode ser sacerdote. Há outros casos, como quando é preciso escolher entre a vida da mãe e a do feto. Os católicos santificaram aquela mulher, como é mesmo o nome?


''Marx dizia que a religião é o ópio do povo. No tempo dele ópio era remédio, acalmava a dor. O pentecostalismo, a idéia de que o Espírito Santo cura, cresce nos países onde a Medicina é cara''
ÉPOCA - Gianna Beretta Molla. (Em 1962, Gianna, com um tumor no útero, preferiu morrer a abortar a quarta filha. Foi santificada em maio.)
Marcella -
Essa. Porque preferiu deixar três filhos órfãos a abortar o feto e salvar sua vida. Incrível. Imagino que deva ter sido assim: ''Antes de cuidar de todas essas crianças, eu morro. É muito trabalho!''. Virou santa. Esse é o componente misógino. Mas nem todos os católicos são assim. Estou convencida de que a Igreja tem um falo muito grande e, ao mesmo tempo, tem uma base homossexual muito grande. Misógina e homossexual porque a misoginia impede seus membros de conhecer e amar as mulheres. Não que tenham amantes, mas é como são formados. A mulher é um marciano. Na questão do aborto, o que dói é que a Igreja não discute com seriedade. É autoritária. Diz que isso não se discute porque Deus disse. Mas Deus disse o quê? Tem de acabar com esse discurso. Deus não disse nada. Toda doutrina é escrita por contendas políticas. Assim, o que tem de acontecer é que o debate do aborto tem de ser retirado da Igreja, tem de acontecer na esfera dos direitos humanos.

ÉPOCA - O que você achou do último documento do Vaticano (''Carta aos bispos sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no mundo'')?
Marcella -
Quase morro de rir. É um documento primitivo. Se um aluno meu escreve um ensaio desses, eu devolvo e mando ele ler mais. Me assombra um papel tão ignorante, porque na Igreja Católica há gente muito inteligente. Um discurso baseado na interpretação simplista da Bíblia, da Arca de Noé, mas o que são essas mitologias depois de Marx, de Freud? E ao final diz que as mulheres têm de ser mães. Não podem ser sacerdotes, mas podem contribuir muito porque são especiais. Estou sempre contra aqueles discursos que falam de como a mulher tem mais ternura, cuida mais das pessoas. Eu, não. Sou um desastre, não cuido de ninguém. Fui chamada para comentar o documento numa rádio da Grã-Bretanha. Eu não tenho nada a dizer. Algumas feministas ficaram indignadas. Achei engraçado. Não é para levar a sério. É para rir.

ÉPOCA - Qual foi a repercussão de Teologia Indecente?
Marcella -
Eu me surpreendi, fui bem recebida e não estou acostumada. Ganhei muitos rosários. Teólogos me escreveram dizendo que estavam no armário. Não porque são gays ou se vestem de mulher, mas porque estão no armário heterossexual. Falo de adultério, de promiscuidade. O casamento às vezes funciona, às vezes não, funciona para alguns, para outros não. Eu não funciono com o monoamor. Sou poliamorosa.

ÉPOCA - Como você se define?
Marcella -
Eu não me defino nunca. Sou Queer.

ÉPOCA - Você é bissexual?
Marcella -
Suponho que sim. Amei homens, amei mulheres, nunca sei a quem vou amar. Amo. Na Grã-Bretanha não me interessam os homens. Já no Brasil vejo os homens e penso: hum… até poderia chegar lá.

(entrevista extraída no site http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT805466-1666-1,00.html)